quinta-feira, 30 de abril de 2015

Deliciosas Sardinhas




Sardinhas escabechadas sobre focaccia de alecrim (Foto de João Lombardo)

Sardinhas são saborosas e geram receitas deliciosas. Infelizmente não costumo ver, nos restaurantes chamados de alta gastronomia brasileiros, pratos com esse peixinho azul prateado de sabor intenso, rico em boas gorduras. Uma estrela da cozinha popular brasileira, sem dúvida. Um clássico além mar, em países europeus como Portugal e Itália. No entanto, um nome que não se vê em cardápios de restaurantes ao lado do linguado, robalo, garoupa, atum, salmão e tantos outros peixes ditos nobres.

A propósito, não sei qual a linha utilizada como parâmetro para dividir produtos entre nobres e menos nobres, de primeira e de segunda. Acredito haver produtos para situações e preparos diferentes. Não se leva um linguado para a brasa porque ele pode se desfazer sobre a grelha. E seu sabor, delicado, ficará ofuscado pelas notas tostadas da brasa. Isso já não acontece com as sardinhas, cujo sabor, mais encorpado, e textura firme são propícios para a brasa. Portanto, eu não escolheria um linguado para levar à brasa (o que não quer dizer que alguém não possa fazê-lo). Ficaria com as sardinhas. 


Sardinhas na brasa, deliciosamente tostadas (foto de João Lombardo)

Comi sardinhas em momentos e situações diferentes, em Portugal. Um delas foi há dois anos, numa tarde, num vilarejo próximo ao Porto. Uma família preparou sardinhas na brasa para mim e outros colegas, em viagem enogastronômica por Portugal. Um preparo regado a vinho Verde, servido em copo de plástico branco, acompanhado de broa de milho. Foi uma tarde particular, animada por música e danças folclóricas apresentadas pela família e moradores. Tudo numa praça, próximo a uma pequena ponte romana. Inesquecível para o paladar e para a alma. 

Ano passado provei um prato de sardinhas preparado pelo premiado chef português Alexandre Silva, primeiro vencedor do Top Chef Portugal, então à frente dos restaurantes Bocca e Bica do Sapato, dois endereços referenciais para se comer em Lisboa. Foi no Mercado da Ribeira, um espaço gastronômico, também em Lisboa, onde renomados chefs oferecem pratos descontraídos e elegantes, ao lado de lanchonetes, sushi-bar e outros pequenos restaurantes. Silva preparou um prato de sardinhas marinadas (como no ceviche), servidas com broa de milho e salada.  Uma receita bem idealizada, com apresentação contemporânea. Um preparo com sabor digno da chamada alta gastronomia. O chef confessou-me que as sardinhas são seu ingrediente preferido na cozinha portuguesa. 

As sardinhas, cozidas apenas na acidez da marinada (foto de João Lombardo)

A sardinha, de fato, é um peixe popular. E que bom. Quando eu era menino e morava no interior de São Paulo, duas vezes por semana passava na minha rua uma caminhonete com a carroceria lotada de sardinhas mergulhadas em gelo. A chegada do peixe era anunciada pelo motorista/vendedor, com um megafone: “eeeeh a sardinhaaaaaa…. é a sardinha fresca do maaaar …”. Minha mãe comprava religiosamente os peixes nas duas vezes semanais que o veículo passava. Um quilo, um quilo e meio. E nossa família se deliciava com preparos simples, pratos de sabores familiares. O verdadeiro confort food.

O escabeche, na panela, antes de ir para o fogo (foto de João Lombardo)

Um preparo clássico da minha família era o “Escabeche de Sardinhas com Polenta”. Escamas, cabeças e vísceras dos peixes eram retirados. O fundo de uma panela era regado com um pouco de azeite, coberto com rodelas de cebolas e tiras de pimentões vermelho e amarelo. Sobre essa cama eram acomodadas algumas sardinhas, cobertas com funcho, fatias de tomate fresco, ervas aromáticas, azeitonas, pimenta vermelha fatiada e alguns dentes de alho. Dependendo do tamanho do panela, uma ou duas novas camadas eram adicionadas. Tudo era temperado com sal e pimenta-do-reino. Por último, o preparo era regado com vinagre, e pelo menos o dobro de azeite de oliva. A panela era levada ao fogo brando e cozinhava por cerca de 1 hora e meia a 2 horas. Paralelamente, era preparada uma polenta firme.

Na hora de servir, os cubos de polenta eram acomodados no centro de um prato. Em cima entravam as sardinhas, tenras, untuosas e perfumadas. O molho de azeite regava o peixe, com todos os vegetais, pode-se dizer, confitados. E aquele “molho” cobria a polenta, levando ao paladar um conjunto de sabores mediterrâneos, simples e plenos. Muito bom!

O cuscuz paulista de sardinhas também era um clássico de minha casa. Aliás, minha mãe era mestre em fazer cuscuz. As sardinhas eram fritas e acomodadas nas paredes e fundo de uma forma de pudim. Um massa feita com farinha de milho, muito azeite, cebola, pimentões, ervas e temperos diversos cobria as sardinhas. Ao ser desenformado, o cuscuz exalava um perfume maravilhoso, irresistível. E exibia o peixe preso às laterais do enformado. Devorá-lo em fatias, com as próprias mãos, era um prazer indescritível.

As sardinhas no prato (foto de João Lombardo)

As sardinhas estão intimamente ligadas à minha infância. Pratico receitas com o peixe até hoje, entre elas, as receitas de infância. Lamento não encontrar sardinhas nos cardápios de restaurantes que servem pescados e frutos do mar. Lamento não ver receitas contemporâneas com esse peixinho que emprestava seu sabor a um outro prato familiar, o Spaghetti alle Sarde. Um produto que poderia trazer surpresas deliciosas ao paladar.

Para os que gostam, reproduzo a seguir a receita do Escabeche de Sardinhas, com uma pequena alteração: menos vinagre e a entrada do vinho branco, para tornar o prato compatível com vinhos. No link do youtube você vê o preparo, passo-a-passo e conhece uma dica de vinho para acompanhar. 

O escabeche, pronto (foto de João Lombardo)

Escabeche de Sardinhas

800 g de sardinhas limpas, sem cabeças e vísceras
3 cebolas cortadas em rodelas
4 dentes de alho laminados
2 folhas de louro fresco (ou seco, se não tiver)
1/3 de xícara de salsa picada
¼ de xícara de folhas de manjericão fresco
Tiras de ¼ de pimentão amarelo e ¼ de pimentão vermelho
½ xícara de bulbo de funcho fresco fatiado
4 tomates de bom tamanho fatiados
200 ml de vinho branco seco
50 ml de vinagre de vinho branco ou maçã
250 ml de azeite de oliva
50 g de azeitonas pretas fatiadas
50 g de alcaparras
Sal
Pimenta do Reino


Modo de fazer:

·      Regue o fundo de uma panela com um pouco de azeite de oliva.
·      Cubra o fundo com metade das rodelas de cebola, das tiras de pimentões e algumas folhas de manjericão.
·      Sobre essa cama, acomode metade das sardinhas
·      Sobre as sardinhas, salpique o alho, distribua as tiras de erva-doce, o louro e as alcaparras.
·      Tempere com sal e pimenta-do-reino.
·      Cubra com metade das rodelas de tomate e salpique azeitonas pretas. Dê mais um toque de sal.
·      Repita a operação, fazendo novamente cada uma das camadas. Termine com o tomate e as azeitonas.
·      Regue, então, com o vinho branco, o vinagre e o azeite de oliva.
·      Leve a panela ao fogo brando, tampe metade da panela e deixe cozinhar por cerca de uma hora e meia. Não deixe ferver forte, o importante é que o cozimento seja suave.
·      Desligue e deixe esfriar.
·      Você pode servir no mesmo dia ou deixar para o dia seguinte, quando terá mais sabor.
·      Sirva sobre polenta amarela ou branca ou com pão, de preferência uma bela focaccia.

Sugestões de vinhos e cervejas para acompanhar:

Vinho Verde ou Alvarinho, se pensar em Portugal.
Grecco di Tufo da Campânia ou branco siciliano de Grillo e Inzolia, se pensar em Itália.
Verdejo, para quem vai de Espanha.
Riesling, para pensar em alemães.
Um rosé da Provence, para beber a França.

Para os cervejeiros, uma Pilsen ou Weissbier.

Saúde!

terça-feira, 28 de abril de 2015

Sob o olhar de Fellini


Fellini, observando o movimento (Foto de João Lombardo)

Jantei no Pettirosso, um pequeno restaurante na Alameda Lorena, em São Paulo. Provei receitas clássicas da cozinha romana e pratos com viés contemporâneo elaborados com ingredientes típicos da culinária romana. Tudo estava muito saboroso, pratos bem apresentados, sabores equilibrados. O serviço correto, equipe simpática, uma boa carta de vinhos. Uma casa chefiada pelo italiano Marco Renzetti.

O ambiente do Pettirosso é despojadamente elegante. Um salão decorado com móveis e fotografias antigas, ao estilo das trattorie familiares. No andar superior, ambientes particulares. Uma espécie de área reservada, com paredes, cadeiras e copos vermelhos sobre as mesas. Nas paredes, fotos de Sophia Loren e Fellini. Um clima que remete à Roma dos anos 1950/60.

Comecei pelo couvert: pão italiano, azeitonas temperadas com uma sutil nota cítrica, manteiga com anchovas, patê de fígado. Para a entrada, escolhi Salumeira Artigianale, um combinado de lombo, pancetta e guanciale, este último, uma espécie de bacon não defumado feito com bochecha suína, difícil de se encontrar no Brasil. O guanciale estava suave, com uma sutil tendência doce; o lombo agradavelmente sápido e a pancetta, intensa e saborosa. Comi com pão. Fiquei tentado a regar azeite. O delicioso sabor original dos fiambres, no entanto, mostrou-me ser dispensável qualquer condimento adicional.

Guanciale, lombo e pancetta, o triunvirato do sabor (foto de João Lombardo)

Cheguei a pensar em pedir Panino com la Porchetta, um dos dez antepastos oferecidos pela casa. A porchetta, como diz o próprio restaurante, é uma instituição na capital italiana. Ela brilha nas vitrines de lanchonetes e restaurantes romanos. E em meio às fatias de pão. Salivei por ela, mas ficou para a próxima.

Na hora de escolher o prato principal, outra dúvida. Atento aos onze primi piatti e cinco sencondi, parei num clássico: Coda alla Vaccinara, a rabada bovina típica romana. A receita original leva vinho tinto e chocolate amargo, ingredientes utilizados por Renzetti no Pettirosso. Pensei em pedi-la. Mas cabei aceitando a sugestão de Erika Andrade, esposa do chef e gerente de atendimento da casa. Ela sugeriu uma massa com moldura contemporânea, o Penne alla Vodka e Burrata “Alessandro”. Resolvi provar um prato contemporâneo de Renzetti.

Penne alla Vodka e Burrata "Alessandro" (foto de João Lombardo)

O preparo veio numa temperatura excelente. As penas ou penne estavam envolvidas por um untuoso molho de tomates, com uma sutil nota de pimenta vermelha. Molho saboroso, sem acidez excessiva, sal bem dosado. No centro do prato, como uma coroa, a burrata, o amanteigado queijo de búfala italiano. Ele atribui uma delicada nota láctea ao conjunto. Os sabores mostraram-se equilibrados, bem conjugados. E o prato foi bem acompanhado por um vinho de corte à base de Sangiovese e Merlot.

 A diva do cinema italiano, à mesa (foto de João Lombardo)

Não consegui chegar à sobremesa. Estava satisfeito.

De volta ao andar superior, dei uma última espiada no ambiente. Numa das salas, uma mesa redonda, com 12 lugares, diante de uma foto em preto e branco de Sophia Loren à mesa. Na sala contígua, mesas para quatro pessoas e uma foto de Federico Fellini. Detive-me. Que fascinante poder jantar num restaurante romano, em São Paulo, guardado pelo olhar penetrante do inquieto Fellini. “Dolce Vita”!

Serviço:

Pettirosso Ristorante
Alameda Lorena, 2155
Fones: (11) 3062-5338
                   3062-4531
São Paulo - SP